terça-feira, 12 de outubro de 2010

Dar-se a luz

Enquanto a minha vida acontece, neste exato momento 33 mineiros se preparam para nascer de novo. Passar por um canal vaginal de ferros e cimento, já homens feitos, a cabeça primeiro, em direção à luz. Rezo por eles como rezo por mim todos os dias. Que dê tudo certo, o que quer que isso queira dizer. Passar três meses debaixo da terra pra depois ressurgir, uma experiência sequer imaginável, e eles lá, passando por isso. Enquanto aqui os soterramentos são mais simbólicos- mais suaves pro corpo, mais irresolvíveis por obras de engenharia e cálculo.

domingo, 11 de abril de 2010

JAM, 10-04-2010

Eu não me lembro do dia certo em que aconteceu, mas foi uma benção quando as palavras ficaram difíceis pra mim. Elas começaram a me irritar pelo pouco tamanho, pela falta de textura e volume, pela linha reta que imprimiam em tempos espirais.
Mas como conhecer o mundo pra além das letras?
Eu descobri o tato.
O sentido mais espacial de todos. E foi (ainda é) difícil me situar, minha pele, meu envelope com tudo dentro, em relação ao chão, ao teto, aos lados e aos outros envelopes de outras pessoas com todas elas dentro que eu cruzo pelo caminho.
Por essa época, comecei a dançar. Dançar apesar de tudo o que eu achava de mim, apesar do meu corpo fraturado. Agora repenso: por causa do meu corpo fraturado, por que eu queria falar a partir dele, sem defeito de comunicação.
Num primeiro momento, eu pensava que dançar era só dentro de uma sala, com uma barra, um espelho, pernas doendo de exercício. Depois tentei rolar por cima das pessoas e deixar que rolassem por cima de mim, e me dava um pânico – a tensão superficial da minha pele a deixava dura como concreto, e eu tinha justamente a resistência do concreto. Só muito mais tarde fui descobrindo que até o concreto tem suavidade, desde que eu deixe que meu corpo descubra os pontos onde é possível o amoldamento.
Agora, neste exato ponto do caminho, eu comecei a me interessar por materiais mais instáveis por natureza: corpos e danças dos outros. Vou perdendo o medo que eu tinha das crianças e de suas energias mais caóticas – ontem um grupo grande delas corria e corria em volta dos corpos rolando sobre o chão, o meu inclusive, e os usava como obstáculos sobre os quais podiam saltar, cair, pisar, rolar. Vou me achando mais nos corpos dos outros que me propõem coisas apesar da minha vergonha de encostar, apesar de eu muitas vezes não saber o que fazer nem pra onde ir quando recebo um convite.
Vou encontrando corpos que fazem o que sabem fazer, igual ao meu corpo que tem sua sabedoria intransferível e seus limites sempre móveis e aprendo com eles a ser. Mas de tudo, é dançando que percebo a minha dificuldade de receber, por puro medo do ridículo. E é dançando que eu vou exercitando o desfazer dessa dificuldade.
E falar sobre isso é difícil, mas às vezes eu tento, por que é também uma tentativa de texturizar e avolumar as palavras que eu tinha abandonado.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Olhando, feito Goethe

De vez em quando deixo o meu jardim suspenso em potes ficar meio selvagem e cuidar de si mesmo. Pra ele lembrar de onde veio.

O amor que eu espero

Pés pulsáteis. Propulsão. E a memória da frase que o homem dizia pra mim no sonho, os corpos tendo se entendido: "- Você recontou a minha vida inteira pra mim. Você é igual ao mar."

quarta-feira, 3 de março de 2010

Sobre ballet, esforço e sofrimento.

(para minhas amigas Sirah Badiola e Mariana Meloni)
Esforço, na Física, é um trabalho com rendimento diminuído, que causa desgaste no sistema. Portanto é burro fazer esforço. Fazer esforço resulta de não se ter consciência de como funciona determinado sistema em determinado contexto delimitado no tempo e no espaço.
Em geral, quando temos um problema para o qual não encontramos uma solução rápida, ao invés de procurarmos a resposta, acionamos uma resposta antiga, pra ver se cola, ou imitamos a resposta externa, dada pela imagem do outro– e às vezes, pra dizer que dermos conta (afinal, temos que dar conta, não é mesmo- não é isso que ouvimos da mãe, do pai, do padre, de professores meio ruins e de chefes tiranos a vida inteira?) fingimos que colou.
Mas não tem como REALMENTE colar.
Se o problema era diferente, a solução antiga só serviu como gambiarra existencial.
O sistema sempre se enfraquece na emenda – e compensamos a falta de sutileza perceptiva e de síntese criativa com esforço- o próprio esforço de fingir que a solução colou - e os esforços subseqüentes dos infinitos reparos que teremos que fazer com durepóxi nas rachaduras da nossa vida. É um paradoxo: por preguiça ou medo ou inabilidade de esperar a síntese de uma nova resposta- síntese essa que nos dá trabalho, mas um trabalho eficiente, porque usado adequadamente- causamos desgaste no sistema, por que realizamos um trabalho “mal feito”- o esforço- achando que estamos economizando as nossas peças.

Escrevo isto a propósito de uma experiência linda que eu tive hoje. Voltei à dança clássica. Todo mundo sabe o quanto sofrem as bailarinas. Toda aquela abertura, o andeor, a sapatilha apertada, a barriga pra dentro, o arco do pé levantado, varinhadas nas pernas, o abdome chupado, a bunda pra dentro. Pois bem, eu nunca levei varinhada nas pernas, mas já tive dores homéricas nos joelhos e uma retificação da cervical bem horrorosa por conta de aulas de ballet que não me permitiam construir o meu corpo, e me obrigavam, pelo esforço, a entrar numa forma pré-determinada que, diga-se de passagem, nunca ia ser a minha mesmo, por que eu tenho um metro e oitenta de altura e uma bela bunda grande.
Só que eu sempre amei a sensação das piruetas, dos saltinhos, e apesar de ter encontrado na dança contemporânea um chão fértil de exploração pras minhas sensações, me dava saudade de fazer gettés e pás dês burrés e todas aquelas coisas frescas e lindas em francês. E fazer dança clássica também sempre significou ser meio punk pra mim- rebelde, gritando o tamanho do meu corpo pra quem quisesse ouvir, e dando bordoadas mentais no primeiro professor que eu tive na infância, um escroto que gritava comigo (eu tinha seis anos) dizendo que eu era gorda e burra e desajeitada.
Então fui fazer dança clássica com minha professora muito especial, que tem influências do Klaus Vianna, mas tem toda a sabedoria dela mesma, além de uma generosidade absolutamente transformadora. E de repente eu me vi dando giros e sorrindo no meio da tarde de uma quarta-feira chuvosa, enquanto fazia piruetas e tandis e tudo o que eu sempre tinha feito com sofrimento e uma certa raiva de resistente. A alegria saia dos meus ossos que aprendiam respostas novas pra formas já conhecidas, e eu me senti sem peso, capaz de voar a partir dos meus pés ancorados no chão. Tudo isso por que me foi dado o tempo de descobrir como se mexe um esqueleto quando a gente não tenta interferir demais nele a partir do exterior.
Poder perceber-se em situação- é isso que diminui o esforço e faz com que a gente aprenda coisas. E aprender é gostoso PRA CARALHO.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Muda

Muda. Muda. Muda.
Quatro letras que são o mantra da minha liberdade.
É engraçado perceber que eu passo muito tempo grávida de mudanças e que de repente acontece e as minhas sete cabeças se alinham e eu surfo a onda.
Depois, quando o mar quer, volto pra praia com a prancha na mão e espero, preparando com o olhar, o momento da reentrada.
E quando percebo, não é nem a mesma praia, nem o mesmo oceano.
Se bem que olhando no mapa, todos os mares são um.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Receita Familiares

Toda vez que como ovo quente lembro do meu pai. Quando eu era pequena, ele, nos fins de semana, colocava os ovos pra ferver e depois, na hora de servir, descascavá-os um a um. Eles mantinham a forma, e depois, quando eu enfiava a colher, eles explodíam amarelos na xícara.
Até hoje, eu mantenho esse capricho. Dá muito mais trabalho do que simplesmente cavocar o ovo e jogar na tacinha, mas é uma espécie de manifestação estética.

Meu pai também faz, até hoje, o melhor queijo quente do mundo. Mas deste eu não sei muito bem o segredo.