domingo, 3 de janeiro de 2010

Impermanência

O nosso tamanhinho frente à força das águas. Eu na frente da tevê ontem à noite chorando umas lágrimas por São Luis do Paraitinga engolida e demolida pelo rio. Aquela cidade tem uma história, mas eu tenho uma história naquela cidade.
A primeira vez que fui pra lá, com meu querido namorado estudante de arquitetura que mais tarde se perderia de mim e se acharia no mundo, os casarões não tinham sido restaurados, não havia festivais de música, não havia festa do saci, nem sequer pousadas. Tinha só um hotel meio feioso, em cima do supermercado, que atendia pelo nobre nome de Barão. Meu namorado queria me mostrar as casas velhas por que ele sabia o quanto eu gostava de coisas que cheiram a tempo. Comemos num dos poucos restaurantes que havia, pedimos uma omelete cada um e eu me lembro de ter achado muito doce e engraçado a dona do restaurante ter vindo até a nossa mesa e se desculpado por que as omeletes não estavam exatamente do mesmo tamanho, apesar de terem levado a mesma quantidade de ovos. Ela disse que era culpa da ajudante de cozinha, que tinha batido os ovos de uma delas com a mão pesada. Passamos só umas duas horas na cidade, estávamos a caminho da praia, mas mesmo assim, alguma coisa ali me encantou. Anos depois eu voltei. E voltei. E voltei tanto que queria ter ficado lá.
Nesse meio tempo o namorado se foi, eu dei muitas voltas pelo mundo e ao redor do meu próprio rabo e enfim acabei conhecendo, através de amigos, uma moça que foi lá morar e que virou uma querida amiga também. Toda vez que eu estou passando pela região, eu paro pra almoçar e visitar a casa dela, que, combinando com a pessoa dela e do namorido dela, fica na Rua da Felicidade.
Eu fui pro primeiro festival da canção que teve lá, vi um show do Arnaldo Antunes no coreto da cidade - ele, com aquele jeito de boneco de corda, o coreto colorido e a matriz atrás, a lua cheia brilhando em cima, eu tive a sensação de estar no lugar mais perfeito do mundo enquanto ele cantava “não há o que lamentar quando chega o fim do dia”. Numas férias de ano novo, passei duas semanas numa casa com a vista mais linda do mundo: emolduradas pela janelinha vermelha onde eu apoiava os cotovelos, as torres da matriz cintilavam no pôr-do-sol, todo santo dia. Na meia noite do trinta e um de dezembro eu fugi da festa na rua, entrei na Capela das Mercês e fui rezar pro meu deus particular, na frente da santa grávida que abria suas asas sobre o altar.
Ontem, tudo isso deixou de existir.
Só sobraram as minhas fotos meio maltiradas.
A capela e a matriz desabaram. Noventa por cento do município está alagado, as casas com água até o telhado.Vi a dona da padaria onde eu comprava meus maravilhosos queijos falando na tevê, com aquela calma característica de quem está em choque, que tudo tinha se perdido. A doceria, o Pedro Ernesto, a loja de tecido, a casa da D. Cinira, tudo afogado. A casa da querida amiga se salvou, por que fica em cima do morro, mas as casas dos outros parentes não.
Estou perplexa, triste, queria estar lá pra ajudar e se pudesse pegava uns tijolos e reconstruía aquelas igrejas com a minha mão.
Também vi na tevê a torre da matriz ruir e cair, como se fosse um castelo de areia. Ainda parece só um sonho ruim, mas eu fico vendo e revendo a imagem, e me convenço da verdade.
A cidade vai precisar de muita força e muita luz pra se reconstruir, e, se depender de mim, ela vai ter.

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